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ARTIGO
Texto para a exposição de Nana Moraes no Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro, 2017
Exposição “Ausências” de Nana Moraes
Nana é uma figura miúda, magra, cabelos curtos, um olhar cândido embora contundente. Ela poderia ser confundida com uma prisioneira. Alguém que sofreu na carne e no espírito as torturas e agrumes desta vida. No entanto, Nana não cometeu crime algum.
Nana se interessou, de início, por prostitutas de beira de estrada. Agora, se aproximou de mulheres condenadas ao sistema prisional brasileiro. Aquele mesmo cuja primeira providência é marginaliza-las do convívio com os seus filhos. A artista adentrou as jaulas que mantém encarceradas, no Estado do Rio, estas mulheres. Foi uma pequena penca de meia-dúzia delas que se dispôs a ser fotografada. Que aceitou escrever, à mão, cartas a seus filhos. Que permitiu a Nana fotografa-los. E ouvir os depoimentos de ambos os lados, em palavras encarceradas em ausência. Aquela ausência física, doída, dos corpos de mães e filhos que não se veem. E nem se tocam.
Esta poderia ser uma exposição de arte fotográfica. Não o é, apesar das magníficas fotos, esvaziadas de gente, que mostram luz e sombra em grades, portas, bancos de cimento da penitenciária, todos nus e crus: os locais onde durante dias, semanas e anos, pares de pernas prisioneiras caminham arrastando os andrajos da ossatura que as mantém de pé, da memória que as faz suportar o peso. Todos os pesos.
Do lado de fora do presídio estão as meninas e meninos, muitos agora já adolescentes, que vislumbram, pela janela afora de seus pequeninos quartinhos de comunidades pobres, o momento de rever a mãe. De tê-la, simplesmente, ao lado (ali não há quem possa pagar advogados onerosos que conseguiriam devolve-las aos filhos).
Esta poderia ser uma exposição da arte do bordado que refaz cicatrizes ou unta fragmentos de corpos unidos por saudades. A artista fez fotos em preto sobre papel branco, apropriou-se de cores exaltadas, pintou e bordou conexões esparsas das vidas dispersas. E criou panos que as reúnem sobre cores distintas: mapas, planisférios da geografia de uma cidade íntima, que nem os que habitam ao lado, são capazes de ver.
Aqui, no entanto, o que vemos, acima de tudo, é uma contemporaneidade fulgurante. Não pelos traços abstratos de um neoconcretismo tardio, tão na moda. A artista não teve nenhuma intenção de reinventar a tragédia. Ou de promover a esperança. Ela, de maneira direta e nítida, deu voz à prisioneira, deu voz à imagem da prisão, deu voz aos filhos repartidos. Criou espantosos retalhos unidos por filamentos de tempo. O tempo da espera lá dentro; o tempo de espera aqui fora. Não se trata de denúncia, nem há motivação política extremada. Nana captura com seu olhar e suas mãos o que está contido na preciosa advertência sobre a artista feita pela prisioneira em carta à filha: “Estranho, mas ela é uma pessoa do bem”.
Num cotidiano tão sepultado pelo lugar-comum, pela mesmice das repetições, pelos egos que querem se apropriar da vida fora deles mesmos e recriá-las em matizes próprios, Nana Moraes diz a que veio. Ela veio nos lavar os olhos, mesmo que fiquemos marejados em lágrimas. Nana nos escreve uma carta, como todas as outras aqui presentes, para nos dizer que, para além das grades e do anacronismo do sistema penal, há sempre lugar para que a vida brote, ressurja, fulgure e inunde.
Leonel Kaz [para a exposição de Nana Moraes no Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro, 2017]